A degenerescência na fotografia da antropobiologia colonial portuguesa

Mariana Gomes da Costa


Palavras-chave: antropobiologia; fotografia; corpos colonizados; degenerescência; estigmas.

Participação: presencial

Esta comunicação aborda a produção fotográfica das missões antropológicas na África portuguesa sensivelmente em meados do século XX (Moçambique, Angola, Guiné), em especial as imagens de cariz antropobiológico. É nosso intuito não só apontar os principais objetivos da utilização do dispositivo fotográfico pela antropologia colonial portuguesa, mas, igualmente, a matriz epistemopolítica em que deve ser inserida tal produção, matriz em que se entrecruzam os pressupostos teóricos e os métodos da antropologia, nas suas vertentes física e criminal, e da psiquiatria.

Tomamos como base o argumento de que a antropobiologia colonial, tecnocientificamente suportada pela fotografia, atendeu tanto ou menos à racionalização da exploração do trabalho colonial – no que seria uma agenda primordialmente económica – do que à construção da ideia de uma Nação pluricontinental e multirracial, procurando legitimar a dominação portuguesa sobre os territórios coloniais e justificar a sua manutenção. Neste sentido, recorremos à noção de degenerescência – a ideia de uma falha biológica ou de um atraso evolutivo afetando determinados indivíduos –, como noção-chave operativa na caracterização das populações das colónias, visando afirmar a sua inferioridade biológica e racial e, a fortiori, a necessidade da tutela portuguesa sobre elas. A condição degenerada dos sujeitos visados pela antropobiologia era denunciada pela existência de estigmas físicos e psíquicos visíveis à superfície do corpo, mas dados a ver privilegiadamente através da e na imagem fotográfica, que deles constituía a prova. Assim, por exemplo, um dos indicadores avaliados nas mensurações antropométricas efetuadas pelos antropólogos das missões, a robustez dos corpos indígenas, sem deixar de constituir uma mais-valia no aproveitamento da mão-de-obra indígena, era em si mesma o indício da sua condição atávica, primitiva, selvagem, refém ainda (e sempre) de um patamar simiesco.

A prevalência das teses degeneracionistas no terreno da ciência antropológica colonial contrasta com a sua desatualização no campo psiquiátrico, onde a vigência da teoria da degenerescência, indestrinçável do recurso à fotografia, foi decisiva: marcando o início da ascensão do alienismo a ciência psiquiátrica, a degenerescência inaugurou também um novo olhar sobre o louco, entendido não já como inocente mas como perverso – o início do racismo científico.

Sem deixarmos de ter em conta o relativo atraso geral de Portugal, verificamos que, de um modo muito conveniente para as necessidades políticas nacionais do pós-II Guerra Mundial, a mesma degenerescência que perdera força nalguns terrenos epistemológicos surge ainda como grelha conceptual de leitura dos corpos colonizados, mostrando-se cooptada por uma agenda política de contornos eugénicos. A tarefa do médium fotográfico será aqui de crucial importância: do mesmo modo que presidira à construção visual da doença psiquiátrica, a fotografia presidirá à construção visual do Outro racial, não doente mas biologicamente inferior, dominado pelo europeu civilizado.


Referências


CLEMINSON, Richard (2014), Catholicism, Race and Empire: Eugenics in Portugal, 1900-1950. Budapest / New York: Central European University Press;
CORREIA, António Augusto Mendes (1944), Gérmen e cultura, Porto, Instituto de Antropologia da Universidade do Porto;
GOULD, Stephen Jay (2014), A falsa medida do homem, trad. Valter Lellis Siqueira, São Paulo, Martins Fontes;
PICHOT, Pierre e FERNANDES, Barahona (1984), Um século de psiquiatria e A psiquiatria em Portugal, Lisboa, Roche;
VICENTE, Filipa Lowndes (org.) (2014), O império da visão: Fotografia em contexto colonial (1860-1960), Lisboa, Edições 70;


Bio


Mariana Gomes da Costa - Investigadora do ICNOVA. Bolseira de doutoramento da FCT, com um projeto que estuda a influência dos dispositivos fotográfico e radiográfico na transformação do olhar médico psiquiátrico. Membro do Projeto Photo-Impulse. O impulso fotográfico: medindo as colónias e os corpos colonizados. O arquivo fotográfico e fílmico das missões portuguesas de geografia e antropologia. Mestre em Filosofia (FLUL, 2018), licenciada em Filosofia (FLUL, 2010) e em Comunicação Social (UCP, 2005).


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