Palavras-chave: Descolonização da Ilustração; Representações raciais; Mário Domingues; Movimento Negro em Portugal; Contra Narrativa
Participação: presencial
Nesta apresentação propõe-se a mostra e discussão de Vumbi II*, um mapa narrativo desdobrável com 48x68 cm, ilustrado e impresso em offset, a preto sobre papel branco. O objecto integra uma publicação editada no âmbito do festival de cinema anti-racista MICAR (Santos; Camanho & Ferreira, 2021) e tem como tema Mário Domingues (1899-1977), jornalista e escritor que na sua juventude foi uma voz central no Movimento Negro em Portugal. Com um tom frequentemente irónico, Domingues teceu duras críticas ao colonialismo português, apelando à emancipação dos territórios colonizados em África. Domingues fez ainda parte de várias organizações do Movimento Negro – fenómeno pouco presente na narrativa histórica portuguesa, pese embora o relevante trabalho de investigação levado a cabo nos últimos anos (Domingues & Garcia, 2021). Assim, a peça propõe um contributo para uma de(s)colonização da História de Portugal, em particular deste período, através de uma contra narrativa que se opõe ao ainda dominante eurocentrismo (Khandwala, 2020).
Tratando-se de um objecto eminentemente visual, pretende-se que essa tentativa de descolonização da História se estenda a uma descolonização, que considero urgente, da Ilustração – imagem reproduzida e propensa à criação de estereótipos, o que a torna ágil na disseminação de ideias redutoras acerca da sociedade. Para além do tema (homenagem a um escritor e activista negro) essa tentativa de descolonização manifesta-se nos modos de o representar: na aproximação da cabeça de Mário Domingues a uma figura da realeza do Antigo Egipto (de acordo com um argumento muito presente no movimento Harlem Renaissance com ligações ao Movimento Negro em Portugal); na recusa de léxicos caricaturais e espero, de estereótipos desdignificantes ou na citação de elementos gráficos africanos (como os padrões duma peça angolana da época).
Ilustrar pessoas racializadas e estórias do colonialismo português (especialmente por um@ ilustrador@ branc@, privilegiad@ e nascid@ no rescaldo de um longo regime colonial), levanta mais interrogações e inquietações do que certezas. Como representar? O que representar e o que excluir?
Em Imagens Apesar de Tudo (2003), G. Didi-Huberman defende que para conhecermos o terror de Auschwitz, temos que o imaginar, reconhecendo neste exercício a importância da imagem, que aparece onde o texto parece falhar. Tendo em conta o mito luso-tropicalista (Freyre, 1933) que sustenta a crença de um colonialismo português benigno para as populações colonizadas, podemos pensar que é urgente mostrar imagens do período colonial, mesmo que expondo episódios de abuso ou violência.
Contudo, tendo em conta o poder da imagem em trazer à presença o representado, suscitando fascínio (veja-se, ao longo da história, reacções como a iconoclasta), espanto ou pavor, existe a possibilidade de humilhar ou reavivar traumas entre pessoas racializadas ou ainda de reforçar velhas construções racistas. Neste mapa optei por não ilustrar os excertos transcritos a partir das crónicas de Domingues “Para a História da Colonização Portuguesa”, decisão para a qual contribuiu ainda o facto do texto ser sobejamente violento.
Estas são algumas questões que julgo de urgente debate entre produtor@s de imagens, alun@s, professor@s, investigador@s, decisor@s polític@s e cidadã@s, no sentido de caminharmos para uma sociedade mais livre de discriminação racial.
*Vumbi é um termo kikongo que significa “espírito dos mortos”. O primeiro mapa desta série (Vumbi I) foca o período durante o qual a República Democrática do Congo foi uma possessão de Leopoldo II, rei da Bélgica. Para além do holocausto vivido pelos congoleses, o mapa alude a actos de resistência como o protagonizado pelo chefe kwango Twa Mwe.
Didi- Hubderman, G. (2003). Images In Spite of All. Londres &
Chicago: The University of Chicago Press.
Domingues, M.; Garcia, J.L. (coord). (2021). A Afirmação Negra e a
Questão Colonial. Textos, 1919- 1928. Lisboa: Tinta-da-China.
Freyre, G. (1933). Casa Grande & Senzala. Rio de Janeiro: Maia &
Schmidt
Khandwala, A. (2020). “Decolonizing Means Many Things to Many
People”— Four Practitioners Discuss Decolonizing Design.
Disponível em:
https://eyeondesign.aiga.org/decolonizing-means-many-things-to-many-people-four-practitioners-
discuss-decolonizing-design/
Santos, J.A.; Camanho, L. & Ferreira, R. (2021). Caderno Micar:
Contributos para a 8ª edição da mostra internacional de cinema
anti-racista. Porto: s.n.
Rita Carvalho lecciona no DELLI– Universidade Lusófona e é investigadora no COW– Center for Other Worlds. É doutorada em Design com tese sobre representações raciais na ilustração portuguesa do Estado Novo (FAUL, com apoio da FCT). Os seus principais tópicos de interesse e investigação incluem representações sociais na Ilustração, história, iluminura medieval, impressão com tipos móveis e narrativas visuais. É ilustradora/ artista gráfica, participando regularmente em publicações e exposições.